Contos

O conto do escritor

Luiz dos Santos Preza


“Colega” - ele disse.
Sempre admirei esse baiano. Lembro-me de vê-lo noites em algum bar da Rua Dias Ferreira, no tradicional bairro carioca – a garrafa de uísque sobre a mesa contornada por amigos, e muita risada; ou às tardinhas, circulando próximo à Praça Antero de Quental, pertinho de onde ele morava.
“Escrevo contos”, tinha vontade de lhe dizer, mas sempre faltou coragem. Ela veio no lusco-fusco de uma tarde de outono. Ele foi gentil. Sorriu.
- ...talvez você pudesse ler um conto meu – a coragem é uma porra de um milagre, né?
Eu nunca tive nada publicado. Mas gosto muito de escrever. Creio que a escrita nos ajuda a manter saudáveis a memória e o espírito. Não preciso dizer que admirava o trabalho dele e que, porventura, um elogio valeria mais que qualquer sábado nublado – que é como eu gosto dos dias. É engraçado como a felicidade parece segura aos sábados.
- Cê é mesmo um carinha ditoso - e soletrou seu e-mail.
Abri a porta de casa com um bafo de euforia, que parece ter contaminado o computador, pois nenhuma mensagem intempestiva de atualização surgiu na tela.
O conto rolara no monitor não saberia dizer quantas vezes. Em todas, já deixara de ser o que era - um erro gramatical, um parágrafo a menos, outro a mais, um lugar para o clichê justificado.
Minha irmã me dissera que eu estava obcecado por revisões - põe um ponto final logo para acabar com esse martírio – ela completou.
Então decidi que estava bom. Mas antes de enviar, ainda dei uma última lida. Queria apenas me certificar de que não havia ocultado palavras a propósito de uma elipse imprópria ou falso zeugma. Não poderia deixar nenhum furo.
Um dia comia o outro sem resposta. Eu parecia programado para consultar o e-mail a cada meia hora. Nada na caixa de entrada. Procurava na aba social, entre informes do youtube e facebook, nas caixas de “Atualizações”, ou mesmo em “Promoções e Ofertas”. Nada. Há momentos em que o vazio guarda a ansiedade dentro dele ou prenuncia uma frustração. Mas eu dialogava comigo mesmo e tentava me convencer sobre a naturalidade da tensão. Nessas horas, a mentira é como uma casa quente em dias de chuva fria. Mas então vem o boicote: “Não tenha mais expectativas. A troco de que um escritor renomado perderia seu precioso tempo lendo uma historinha qualquer de um novato?”
“Podemos marcar uma hora para conversar?” É só o que me lembro do e-mail que me enviou. E do outro: “dia, hora e endereço”.
Walter me aguardava na portaria do prédio. O porteiro interfonou para o apartamento do escritor e logo pediu para que eu subisse.
A porta do elevador abriu. Eu não estava num corredor, mas já dentro da sala. De costas para mim, sentado à mesa, o escritor me pediu que o aguardasse um pouquinho, pois precisava terminar algo que o estava “aporrinhando”.
- Fica à vontade, colega.
Era um salão. Poucos móveis e muita energia pelo espaço. Uma biblioteca mostrava o colorido da vida naquele lugar.
Uma gota de suor aparada da testa umedecera ainda mais minhas mãos. Senti o rosto enrubescido, a garganta ressecada e dificuldade para respirar.
- Calma rapaz. Não é pra ficar nervoso, não! – e me cumprimentou, com um aperto de mão.
Como todas as vezes que o via, sorridente me convidou para sentar numa confortável poltrona, enquanto caminhava em direção à escrivaninha, abarrotada de papéis.
- Não estou conseguindo encontrar um final para meu novo livro. Você já deve ter tido esse tipo de problema, não é?
- Bem, eu nunca terminei um livro.
- Mas vai terminar – e deu uma piscadela - a vida de escritor não é nada fácil. Mas tem o prazer da coisa em si, sabe. Pronto. Ajeitei um pouco essa bagunça... Vamos lá pra varanda.
Lugar aconchegante, coberto, mas arejado e acolhedoramente bem iluminado. Sobre uma mesa de vidro uma pastinha transparente de plástico escuro de onde despontavam fotografias e impressos, misturados. Uma garrafa de uísque e copos. Sentamos nas cadeiras brancas de fibra impermeável. O escritor derramou a bebida nos copos e perguntou há quanto tempo eu escrevia.
- Bestagem minha! Não importa o tempo. O que conta é o que a pessoa traz consigo para ser revelado e compartilhado. Somos todos uma selva de desejos; um hospício de ambições; uma fábrica de certezas vãs; medo de não as concretizar e da frustação; um bordel de ódios cultivados. O que faz o escritor é olhar para tudo isso e contar para seus leitores da melhor maneira possível.
A conversa fluía bem entre um copo e outro - futebol, economia, política... A fala e o gestual ágil e decidido daquele homem - que parecia ainda beber a primeira dose, enquanto já estávamos, creio, na quinta - me fascinavam.
- Bem, vamos deixar de prosa e ir para o que interessa. Aqui está – retirando o material de dentro da pasta de plástico. - Vamos lá. Fiz questão de imprimir. Seu conto tem qualidades. Mas parece que você anda vendo muita sacanagem pela internet. Tá abusado de truta. Sei que uma coisa chama a outra, mas cê excedeu nos xibios e ximbas. Uma esculhambação, sabe fio.
- Como assim? – intercedi desorientado.
- Xô te falar. Uma senhora deixou na portaria aqui do prédio os originais de um romance que havia escrito. Dentro do envelope, acompanhava os manuscritos um recado para que se eu tivesse interesse transformá-los num livro de verdade. O material era bom, mas continha muita sacanagem. Era a experiência dela, estava escrito. Então cortei e modifiquei aqui e ali, e publiquei o livro. Foi um sucesso, mas a mulher nunca me procurou. Apesar de ter mudado o título, se ela lesse saberia que eram seus originais que estavam por trás daquele romance. Vou te dar um conselho de compadre: corta sem dó, começando pelos xibios. Um pouco de truta bem colocada é saudável, prende o leitor. Mas não no seu caso - fodelança escancarada, detalhes supérfluos, tudo explícito, jogado na cara do leitor. E arte é síntese, sacô? Não sou puritano, mas... Tá acompanhando?
- Tá havendo um engano. Eu... - mas o escritor se recusava a me ouvir e manipulava fotografias de genitálias femininas, em closes - aí cê me quebra, né bacana? É taca demais. Porra meu rei, o leitor é exigente. Se liga!
Já com cara de poucos amigos, apontava e me dizia num tom de protesto:
- Isso é pro cê escrever seus contos?
- Perdão, mas não lhe enviei esse material. Apenas encaminhei um e-mail com um conto anexo. Nada que passasse perto dessas... de coisas, assim. O senhor...
- Não me chame de senhor! Senhor tá no céu. (Olha o clichê, pensei).
- Você pode conferir o cabeçalho pra confirmar se realmente é meu o conto? – ainda tentei convencê-lo.
- Não venha me dizer que esse conto não é o seu e que essas fotografias são minhas!
- Não estou dizendo que as fotografias são suas. Apenas peço que confira o cabeçalho do e-mail. O que o senhor está me mostrando nada tem a ver com meu conto.
- Já disse duas vezes que senhor tá no céu, seu azoado! Por favor, agora preciso descansar. Leve essas coisas daqui e não me aporrinhe mais – ele permaneceu sentado me olhando e com o copo de uísque na mão ria escancaradamente - vai com Deus, colega. Ah, ah, ah.
Não me lembro da hora que cheguei em casa. Caí na cama. No dia seguinte, não conseguia fixar o olhar no teto. Minha cabeça girava como um carrossel. As imagens vinham no meu cérebro, mas não chegavam a se completar e se desfaziam como fumaça. Tentava, mas não conseguia ficar de pé. Permaneci com a cabeça baixa, com as mãos sobre a nuca, ligeiramente apertada. Até que o olhar errático encontrou meus contos jogados ao chão, próximo à cama, quase debaixo dos meus pés. Juntei as folhas espalhadas ao lado de uma garrafa de vinho vazia. Percebi nelas algumas pequenas anotações, palavras rasuradas. No pé de uma das páginas, surpreso pude ler a inscrição “tem potencial... biriba nela mô pai”.

 

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